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Eu, eu mesmo e o Tesouro

Charlie Baileygates era um State Trooper (policial) de Rhode Island com múltiplas personalidades. Charlie é gentil, tem uma personalidade fácil e não confronta ninguém, até que alguém ou algo o empurre um pouco longe demais. É quando o seu alter-ego maníaco, Hank, assume. Pra quem não sabe quem é Charlie, ou mesmo o Hank, esse […]

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Charlie Baileygates era um State Trooper (policial) de Rhode Island com múltiplas personalidades. Charlie é gentil, tem uma personalidade fácil e não confronta ninguém, até que alguém ou algo o empurre um pouco longe demais. É quando o seu alter-ego maníaco, Hank, assume.

Pra quem não sabe quem é Charlie, ou mesmo o Hank, esse foi o personagem interpretado por Jim Carrey no filme de comédia “Eu, Eu mesmo e Irene”, lançado em 2000.

Mas o que isso tem a ver com você, e com essa coluna? Em 2021, o mercado tem se comportado algumas vezes como o Charlie, e muitas vezes como Hank, quando o mercado se sente confrontado e contrariado.

Um exemplo recente é a guinada nas expectativas de juros e inflação no mundo. Até pouco tempo atrás, a inflação havia “morrido” e toda e qualquer notícia de impressão de moeda, de novo programa de estímulos fiscais e monetários era recebido com “festa” no mercado. Ativos de risco subiam de preço, as ações ficavam cada vez mais caras, commodities marchavam em alta, e o mercado de bonds (renda fixa) continuava a precificar um cenário de juros próximos de zero para a eternidade.

Para se ter uma ideia, 25% dos dólares em circulação no mundo hoje foram “impressos” (mais precisamente criados ao simples clique de um botão) em apenas um ano, no ano de 2020, como visto abaixo.  Até então, não havia nenhum sinal de preocupação do mercado com esses estímulos, e o mercado seguia como “Charlie”, gentil e sem confrontar ninguém.

M2 nos EUA – Dinheiro e depósitos em circulação, em Bilhões de Dólares. Fonte: Federal Reserve

Expectativas de inflação em alta

Porém, em 2021, algo mudou, e “Hank” resolveu acordar. De repente, os novos estímulos anunciados pelos governos, como o pacote de US$1,9 trilhão aprovado no Congresso americano esse mês, passaram a incomodar o mercado. A inflação voltou a ser uma preocupação, e o Mercado ainda não decidiu qual persona lhe cai melhor. 

Será que vencerá o Charlie, que está feliz com a recuperação do crescimento econômico com inflação baixa e juros próximos de zeros por “tempo indeterminado”, como dizem os Bancos Centrais. Ou vencerá o Hank, que se irrita e se incomoda com a perspectiva de inflação futura e acha que os Bancos Centrais e governos podem ter ido longe demais na impressão de moeda e emissão de novas dívidas? 

Expectativa de Inflação embutidas nos Títulos Americanos de 2, 5 e 10 anos.
Fonte: Financial Times, Bloomberg

Julgando pelo drástico movimento das taxas de juros de longo prazo nos EUA (títulos do Tesouro Americano de 10 anos) e o aumento da inflação implícita embutida nesses títulos, como visto no gráfico acima, parece que por enquanto, Hank está vencendo.

Título de 10 anos – o ativo mais importante do mundo

As taxas de 10 anos nos EUA subiram de 0,5% para 1,7% em um espaço de poucos meses, causando preocupações no mercado e aumento da volatilidade. Por que isso ocorre?  

  1. Muitos consideram o título de 10 anos do Tesouro Americano como sendo o ativo mais importante do mundo. Isso porque além de ser um ativo extremamente líquido, essa taxa define a taxa “livre de risco” na maioria dos modelos de valuation, sendo responsável direta pela precificação de trilhões em outros mercados (ações, commodities, imobiliário, etc).
  2. A alta implica no aumento das expectativas de inflação futuras, que já se encontram acima de 2,5%a.a para daqui 5 anos, como vista no gráfico acima, e isso é acima da meta de inflação do FED (Banco Central Americano) de 2%a.a. O fantasma está da inflação estaria voltando?
  3. A alta implica numa maior atratividade da Renda Fixa Americana, e do Dólar americano como consequência. Como ficam os outros ativos de risco – Ações, Mercados Emergentes, Commodities – nesse cenário de Dólar mais forte? 
  4. A alta implica na potencial exaustão do modelo de dinheiro “infinito e de graça” implementado pelos BCs nos últimos anos. Daqui adiante, os Bancos Centrais e governos terão que lidar com o “Hank” toda vez que quiserem imprimir mais dinheiro.
  5. O aumento das expectativas de inflação pode impactar a inflação de curto prazo. Isso forçaria os BCs a subir juros antes do esperado – similar ao que estamos enxergando no Brasil.
  6. As ações de “crescimento”, como o setor de tecnologia, estão sendo as mais impactas por esse aumento dos juros de longo prazo. Isso porque grande parte do valor dessas companhias se encontra no longo prazo, tornando-as mais sensíveis aos movimentos das taxas de juros.

Enquanto isso, esse movimento tem acelerado a rotação dos investidores saindo dos setores de crescimento e ações “mais caras” e migrando para as empresas de “valor”. Essas são as empresas que as ações estão “mais baratas” nas Bolsas, em geral de setores que foram mais impactados pela pandemia, e mais ligados à economia real – como varejo, shoppings, industriais, commodities, bancos e outros.

A dúvida de 1 trilhão de dólares é saber se o mercado seguirá animado com a recuperação de crescimento econômico com juros ainda baixos e condições financeiras de liquidez ampla, ou se seguirá preocupado com o aumento da inflação, dos juros e seguirá castigando o valuation das ações, que seguem acima do patamar histórico.

Indicador Preço/Lucro (projetado 12 meses à frente) para o índice S&P500 americano. Fonte: Bloomberg

Quem vencerá – Charlie ou Hank?

Por enquanto, seguimos vendo essa alta dos juros de longo prazo como uma normalização aos níveis pré pandemia, por conta da recuperação do crescimento econômico e dos seguidos estímulos fiscais e monetários. Ou seja, o aumento dos juros até aqui foi por uma boa razão, a recuperação do crescimento nos EUA e no mundo. Além disso, a própria alta dos juros pode forçar o FED a aumentar o nível de intervenção e estímulos e voltar a acalmar o mercado, por exemplo caso as taxas de 10 anos subam acima de 2%aa, o que poderia trazer consequências na economia, como o aumento de custos de financiamento, como o setor imobiliário.

Por outro lado, caso o mercado siga contrariado, os ativos que devem sofrer mais e devemos ter um pouco mais cuidado no curto prazo são aqueles mais sensíveis às taxas de juros, como: Ações de crescimento (como tecnologia), commodities como o Ouro e Prata e Moedas e ativos de Mercados Emergentes, que tendem a perder valor frente ao Dólar.

Seguiremos atentos e alerta, como um State Trooper.

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