Por Alexandre Mastrocinque, sócio-fundador e analista de ações da Grimper
Eu cresci ouvindo meu pai contar histórias do Pelé – os olhos brilhavam num misto de admiração e raiva do Rei. A admiração, claro, pelos feitos com a Seleção, desde o golaço em 1958 contra o País de Gales até o passe final no gol antológico de Carlos Alberto contra a Itália em 1970.
A raiva vinha pelos 50 gols em 49 jogos contra o Corinthians (não à toa foram 11 anos sem ganhar do Peixe pelo Paulistão) – “parece que ele sempre se esforçava um pouco mais contra a gente” lamentava o velho.
Pelé é o maior de todos e não há choro ou gol de mão de argentinos que mudem isso.
Vira e mexe me pego pensando como seria vê-lo jogando hoje em dia. Sem qualquer tipo de adaptação ou mudança na preparação, é impossível que conseguisse acompanhar a molecada atual – atletas hoje comem melhor, se preparam mais e têm rotinas de recuperação e prevenção de lesões muito mais sofisticadas. Sem contar, claro, a evolução tática do jogo.
Por mais que tenha sido à frente de seu tempo – enquanto comia direito e se preparava para os jogos, Gérson estava fumando seus cigarros Vila Rica e era mais fácil encontrar Sócrates sentado no Pinguim do que nos treinos do Botinha, em Ribeirão – é impensável que conseguisse aguentar 90 minutos no ritmo que se joga hoje sem um grande trabalho de condicionamento e uma adaptação tática das boas – até o Rei ia ter que voltar para marcar.
Não só no futebol, a evolução nos esportes é notória – Steve Kerr é hoje técnico do Golden State Warrios e também foi parceiro de Michael Jordan no mítico time dos Bulls de 95-96. Jordan, Pippen e Rodman ganharam 72 jogos (de um total de 82), marca que só foi batida em 2016 pelos Warriors (73 vitórias, mas perderam as finais, diga-se). Quando Kerr afirmou que os Warriors de 2016 bateriam os Bulls de 1996 o mundo do basquete ficou em choque, com o que o técnico respondeu: “todos os esportes evoluíram, menos o basquete?!”.
E é claro que, de 1970 a 2021 a evolução não aconteceu só nos esportes. A ciência e tecnologia avançaram em todos os campos, de forma que criamos vacinas e encontramos a saída para a maior pandemia do século em menos de 12 meses; videochamadas não são mais fantasias da Hanna-Barbera e, apesar de não termos criado a viagem no tempo, os carros voadores estão mais próximos do que você imagina.
A Revolução das Plataformas
Desde a Revolução Industrial, no fim do século XVIII, tivemos vários avanços no processo produtivo – O Estudo de Tempos e Movimentos de Taylor, a linha de produção de Ford, o Toyotismo e o Lean Manufacturing deixaram tudo mais rápido, barato e eficiente, mas ainda assim, a organização produtiva se manteve relativamente estável por um bom tempo no que chamamos de modelo pipeline: uma empresa desenvolve produtos e os consumidores os consomem; a produção e a criação se dá de forma linear (entram insumos, ocorrem transformações e saem os produtos finais).
Dentre as características que permeiam os pipelines, é importante notar que os produtos são “empurrados” para o consumidor. O departamento de marketing, em conjunto com o time de criação, define o que ofertar para seus clientes. É assim nas camisetas que você usa, no jornal que você lê e até mesmo nas aulas que seus filhos assistem. O consumidor não tem voz direta no processo – quando muito somos ouvidos por meio de pesquisas e relatórios de vendas.
Uma alternativa ao pipeline são as plataformas que, apesar de não serem novidade (shoppings e supermercados existem há décadas), ganharam uma aliada valiosa na digitalização do mundo. E é aí que as coisas ficaram interessantes.
Em uma plataforma moderna, as funções tradicionais de consumidor/produtor passaram a se misturar. No Youtube, você não só decide o que e quando assistir, você pode criar conteúdo e postar seus próprios vídeos. A mesma coisa com o Twitter, Facebook e até mesmo em plataformas de serviços, onde você pode oferecer suas habilidades como tradutor e contratar um técnico para consertar sua lava-louças.
Um dos aspectos da plataforma mais interessantes, e muitas vezes negligenciado, é a curadoria. Como saber se um produto é bom? Qual vídeo eu devo assistir a seguir?
Em 1999, tivemos uma das maiores atrocidades da história do Oscar – “Shakespeare Apaixonado”, que é bem mais ou menos, levou o prêmio de melhor de filme, roubando a estatueta que seria de direito de “O Resgate do Soldado Ryan”, que dispensa apresentações. Isso só aconteceu porque os velhinhos da Academia foram cooptados pelas estratégias de marketing da Miramax.
Quando deixamos os consumidores (a audiência) se manifestar, a coisa fica um pouco diferente – “O Resgate do Soldado Ryan” tem 1,3 milhão de votos e nota 8,6 no IMDb (uma plataforma!) e é o 24º filme no ranking de todos os tempos. Já a comédia romântica da Miramax tem nota 7,1 com 217 mil votos e não figura nem entre os mil melhores filmes na plataforma.
É claro que as notas no IMDb não podem ser tidas como uma verdade absoluta, mas os erros e desvios são “orgânicos” e é muito improvável que alguém corrompa o sistema para promover seu próprio filme.
Se você perguntar a Jeff Bezzos qual foi o pulo do gato durante a criação da Amazon (plataforma!), imagino que ele vá citar uma série de fatores, sendo um deles, a criação da seção de críticas dos usuários – todo produto anunciado tem uma nota e, muitas vezes, uma série de críticas, o que ajuda muito no processo de compra. Diferentemente do vendedor de carro tentando te empurrar uma jaca sobre rodas, os comentários são escritos por consumidores como você, o que torna tudo bem mais transparente.
É verdade que temos alguns relatos de empresas que conseguiram burlar o sistema e criaram relatos falsos. Mas isso parece ser exceção e não tenho dúvidas de que os programadores da Amazon estão trabalhando incessantemente para acabar com essa história.
Quando você abre a Netflix (plataforma!), as recomendações são baseadas nos seus hábitos e no de pessoas parecidas com você – sem nem perceber, você passou o fim de semana inteiro assistindo “Breaking Bad”.
A partir do momento em que carregamos nossas vidas em nossos bolsos (e bolsas), a digitalização do mundo vai se tornando um processo mais profundo – seu celular é ao mesmo tempo banco, supermercado, agência de notícias e central multimídia. Ah, faz ligações também.
Pergunte para qualquer pessoa com menos de 20 anos o que ela pensa de ter que esperar uma semana para assistir uma série num horário fixo e sem direito a reprise. Imagine, então, ter que esperar a sua música favorita tocar na rádio para poder gravá-la numa fita K7 (!!!) ou ter que comprar um CD com 11 músicas que você nem conhece só para poder escutar “Closing Time”?
Se os esportes evoluíram, se a medicina evoluiu e se o processo produtivo mudou, para mim é claro que a análise financeira também tem que mudar!
Um dos textos mais interessantes que li esse ano foi o memo de Howard Marks “Something of Value” (infelizmente, só tem em inglês), um relato de conversas que teve com o filho, um investidor em growth companies (empresas de crescimento).
Howard Marks é um investidor raiz, que fez fortuna e fama aplicando conceitos de value (valor) no mercado de crédito e é uma das principais referência atuais do mercado financeiro. O “embate” com seu filho no começo da pandemia é uma representação quase perfeita da principal discussão que tomou conta do mercado nos últimos anos, incluindo os restaurantes da Faria Lima e os bares do Leblon.
Value (valor) x Growth (crescimento)
Os value investors, invariavelmente, são discípulos de Warren Buffett que, por sua vez, começou a brincadeira há muitos e muitos anos seguindo os passos de Benjamim Graham, autor do seminal “O Investidor Inteligente”.
Quando Graham escreveu a bíblia do value investing, em 1949, as técnicas de análise eram bem mais rudimentares e o acesso à informação, então, era pífio. Se você quisesse consultar o balanço de uma empresa teria sorte se encontrasse alguma coisa pouco defasada na biblioteca municipal e departamentos de Relações com Investidores eram um conceito mais futurista do que carros voadores.
Nesse contexto, Graham, e depois Buffet, se especializaram em encontrar ações de empresas que negociavam abaixo de seu valor de liquidação – conceito que Buffett batizou de “cigar butt investing”, numa analogia a encontrar bitucas de cigarro descartadas na rua, para dar uma última tragada. Está longe de ser sexy, mas é de graça.
Oras, se uma empresa está negociando abaixo de seu valor de liquidação, é bem provável que apresente múltiplos muito baixos e é aqui que começa toda a confusão. Com o passar do tempo, o conceito de value se misturou com essa ideia de ações “baratas”, aquelas que negociam com múltiplos extremamente atraentes.
Porém, como o próprio Buffett vai te dizer, value nada mais é do que comprar algo por menos do que vale. Simples assim. Os múltiplos podem até funcionar como regrinha de bolso, mas o que importa mesmo é ter uma boa ideia de quanto vale a empresa e, então, comprar suas ações estiverem negociando significativamente abaixo daquele número.
Tanto é assim que Buffett comprou ações da Coca-Cola a múltiplos elevadíssimos. E o fez novamente com a Kraft Heinz e, depois, com a Apple. Todas tidas como empresas de crescimento (growth) e não de valor (value).
Olha que interessante: quanto mais os gestores e analistas “de valor” se apegam aos dogmas de preços e múltiplos baixos, mais rapidamente o mundo muda e as ideias do próprio Buffett evoluem. O “Oráculo de Omaha” continua, claro, correndo atrás e valor, mas ele percebeu antes desse povo todo que há muito valor no crescimento. Valor e crescimento não são coisas excludentes!
O conceito dos “cigar butts” é ultrapassado porque ninguém mais está aí amarrando cachorro com linguiça. Não dá para ficar milionário comprando empresa por menos do que ela tem em caixa líquido – se você encontrar alguma coisa dessas, é bem provável que tenha caído em uma armadilha de valor (value trap) – deve haver algum motivo para que aquelas ações negociem assim tão baratas.
Quando olhamos para as plataformas, o que também está ficando ultrapassado são os próprios múltiplos mais tradicionais, como preço sobre lucro (P/E) – não dá para avaliar esses novos modelos de negócio, ainda em estágio inicial e com alto crescimento, com os mesmos instrumentos que avaliamos empresas maduras e geradoras de caixa.
Não à toa, e-commerces são avaliados com base em seu GMV (total de mercadorias vendidas, da sigla em inglês) e as fintechs operam com valores relativos a seu número de usuários.
O Nubank é um exemplo interessante, como bem sabe a Anitta. Com cerca de 30 milhões de clientes, foi avaliado em US$ 30 bilhões, bem na linha com a regrinha de bolso de US$ 1 mil por usuário. O maior banco privado do Hemisfério Sul, que responde pelo nome de Itaú, tem coisa de 83 milhões de clientes e está valendo US$ 60 bilhões, pouco mais de US$ 700 por cliente.
Olhando pelo tradicional P/E, como o Nubank não gera lucro, está numa posição infinitamente mais cara do que o Itaú, que gerou a bagatela de R$ 6,4 bilhões só no primeiro trimestre deste ano.
Se formos aplicar os conceitos clássicos de valor, do múltiplo baixo e geração de caixa, parece uma escolha muito fácil.
Mas, e se a gente colocar em perspectiva que o Nubank cresce 50% ao ano e o Itaú, bem, está lutando para não encolher? Daqui a cinco anos, qual vai ser o lucro de um e de outro? E daqui a dez?
Eu não escolhi o Nubank por acaso – há algumas semanas chegaram as notícias de que o Buffett colocou uns trocados nessa última rodada, que precificou o banco em US$ 30bi. A notícia deu nó na cabeça de muito value Investor por aqui, que está tentando entender o que o bom velhinho está pensando.
O que ele está pensando é o mesmo que sempre pensou: Buffett enxerga valor no crescimento. Acha que o Nubank vai crescer e gerar caixa no futuro. Apesar de seus 90 anos, ele continua sendo muito atual, até porque, ganhar dinheiro nunca saiu de moda.
É claro que é impossível saber, hoje, se a decisão vai trazer retornos positivos. Mas o ponto é que, cada vez mais, investir tem se tornado a arte de encontrar bons projetos tocados por grandes empreendedores. Pessoas capazes de seguir moldando seus negócios de acordo com a nova realidade, que se transforma em velocidade maior a cada dia.
Talvez, mais do que gerar caixa e entregar bons resultados, o verdadeiro valor de uma boa empresa esteja hoje na capacidade de inovar para se manter relevante.
Se você acha que isso torna tudo mais imprevisível, tenho uma má notícia para você: o futuro sempre foi imprevisível e diversas companhias maduras, consideradas vencedoras, desapareceram quase que da noite para o dia. Risco, como sempre, a gente gerencia via diversificação e tamanho da exposição.
E, que fique claro, nada contra as empesas de valor – dinheiro não tem ideologia e compromisso de fidelidade eu só tenho com a esposa. Um bom gestor, como Buffett e Marks bem sabem, não segue dogmas. Na disputa entre crescimento e valor, o importante é sempre ficar do lado certo: o do cotista.

Se você ainda não tem conta na XP Investimentos, abra a sua!