A autora agradece as contribuições de Rachel de Sá ao relatório
Quem acompanha o comportamento dos títulos públicos, incluindo aqueles negociados no Tesouro Direto, deve ter notado que o preço do Tesouro Selic caiu nos últimos dias. Este comportamento não é normalmente esperado para estes títulos. Por este motivo, buscaremos explicar nesse artigo o que aconteceu, o que esperar e o que fazer.
É importante destacar, no entanto, que apesar da queda nós continuamos enxergando as aplicações em Tesouro Selic como uma boa alternativa para reserva de emergência. O risco de crédito do título continua sendo o mais baixo do mercado e a liquidez diária significa que o resgate pode ser realizado a qualquer momento.
Além disso, o efeito para o “pequeno investidor”, ou seja, nós, pessoa física, é muito pequeno (cerca de 0,2% na data do presente artigo – 23/09), por isso não há motivos para pânico.
A LFT e o Tesouro Selic
A Letra Financeira do Tesouro, ou LFT, é o título pós-fixado do Tesouro Nacional. Quando negociada no Tesouro Direto, tem o nome de Tesouro Selic. Seu rendimento é de 100% da taxa básica de juros.
No entanto, o título não é puramente pós-fixado e possui um pequeno percentual prefixado (spread), que até duas semanas atrás era de 0,03% (ou seja, o título rendia 100% da Selic + 0,03%). Normalmente, essa porção da rentabilidade pouco ou nada varia, porém nos últimos dias passou a ocorrer um efeito de marcação a mercado que levou alguns investidores a perceberem oscilação nos títulos.
Marcação a mercado é o mecanismo através do qual as condições correntes do mercado são refletidas nos preços dos títulos. Com isso, ativos de renda fixa podem variar para cima ou para baixo antes da data de vencimento.
Caso os juros do mercado operem abaixo da taxa contratada para um ativo, ele sofrerá um ágio (valorização do preço) temporário e vice versa: caso os juros do mercado operem acima da taxa contratada para um ativo, este sofrerá um deságio (desvalorização do preço).
O que aconteceu?
O Brasil e a situação fiscal
Conforme trouxemos em artigo recente sobre a dívida pública brasileira, a pandemia levou governos ao redor do mundo, incluindo o Brasil, a adotarem medidas de estímulo para evitar uma deterioração ainda maior da atividade econômica, fruto da implementação de medidas de isolamento social.
Aqui, no âmbito fiscal, as principais medidas implementadas incluem: o auxílio emergencial a pessoas em situação de vulnerabilidade financeira, o benefício emergencial de manutenção de emprego e de renda e o auxílio financeiro aos estados e municípios, além do aumento e realocação de gastos com o sistema de saúde.
O resultado desse aumento de gastos é um déficit primário esperado a exceder os 12% do PIB esse ano (frente a uma meta inicial de 2,1% do PIB), e uma dívida bruta que deve alcançar a marca de 93% do PIB – saltando de 75,8% em 2019.
A esse aumento substancial de gastos neste ano, foram adicionadas pressões sobre a trajetória do cenário fiscal do país no pós-pandemia. Os últimos meses foram marcados por discussões sobre um aumento nos programas de transferência de renda e como fazer para acomodar esse aumento das despesas dentro da regra conhecida como “teto de gastos”.
Vigente desde 2017, o Novo Regime Fiscal é visto hoje como a principal âncora fiscal no Brasil, ao estabelecer uma estratégia de ajuste gradual para retomar o superávit primário e reduzir a dívida pública no médio prazo. Uma eventual flexibilização das regra para acomodar o aumento nos programas de transferências, aumentaria a percepção de risco em relação à saúde das contas públicas no país.
Por ora, esse cenário parece pouco provável, uma vez que demanda uma alteração da Constituição e conta com a oposição do Ministério da Economia. Mas esse risco acabou se refletindo nas taxas de juros de mercado, especialmente para prazos mais longos.
A conta única
Este cenário aumenta a necessidade de financiamento do governo. O governo, então, recorre à emissão de nova dívida, conforme detalhado adiante, além de usar recursos de seu caixa prudencial reservado em sua conta única. A conta única é uma espécie de “conta corrente do governo”, onde é gerido o caixa para ingresso de receitas e pagamentos de despesas, provenientes das diversas transações com a sociedade em geral.
Apesar de ter um custo atrelado à Selic[1], o colchão de liquidez constituído na conta única permite ao Tesouro a flexibilidade de não contar apenas com a emissão de novos títulos para pagar os títulos vincendos (além de financiar o déficit primário) em períodos caracterizado por incertezas, em que investidores passam a demandar rendimentos mais elevados para o financiar o governo.
Como veremos adiante, esse é o contexto que vivemos hoje. Nesse cenário, a redução dos recurso da conta única nos últimos meses traz uma preocupação adicional aos agentes de mercado, ao refletir o tamanho da necessidade de financiamento fruto do aumento de gastos no combate à pandemia, que leva o governo a não somente emitir nova dívida, mas também reduzir substancialmente seu caixa prudencial.
[1] Isso ocorre, pois no nosso sistema de política monetária em que a meta Selic precisa ser cumprida, caso o Tesouro decida pagar seus compromissos com recursos da conta única no BC e a injeção de liquidez na economia acabe sendo excessiva, o BC retirará o excesso via operações compromissadas – isto é, via venda de títulos públicos com compromisso de recompra.
O “Megaleilão” do Tesouro Nacional
Quanto à emissão de nova dívida, no Brasil, os pequenos investidores têm acesso a estes títulos a partir do Tesouro Direto. Para que estes títulos cheguem nas mãos de investidores (tanto pessoa física, quanto gestores, bancos ou outros investidores institucionais), o Tesouro Nacional realiza leilões de títulos, no chamado mercado primário. Nestes leilões são definidas as taxas dos papeis ofertados, de acordo com a demanda dos participantes do mercado.
Se os agentes estão mais avessos a risco, as taxas exigidas serão mais altas. Quando há um novo leilão, as taxas definidas balizam também o mercado secundário dos títulos, onde quem os detém pode vende-los para quem deseja comprar. É o caso, por exemplo, do ambiente do Tesouro Direto.
No dia 10 de setembro, o Tesouro Nacional realizou o maior leilão da sua história, ofertando mais de R$ 46 bilhões, sendo cerca de 11,5% em LFTs, títulos pós-fixados. O volume muito expressivo impactou negativamente as expectativas dos agentes, por indicar que o Tesouro ainda tem muita necessidade de recursos, elevando, portanto, a percepção de risco em relação ao Brasil.
Isso levou à exigência de mais prêmio para compensar o risco futuro, principalmente nos títulos pós-fixados, que contam com menor liquidez no mercado, elevando o risco. O movimento continuou nos dias seguintes com o mercado se ajustando à nova realidade. No gráfico abaixo é possível observar a evolução do spread da LFT:
A aversão a risco pode ser acompanhada nas expectativas do mercado para os juros no futuro, refletidas na chamada curva DI futuro. Para entender, o gráfico mostra a leitura, em diferentes dias, das expectativas do mercado para os juros em datas futuras. Exemplo: no dia 21 de setembro, o mercado esperava que os juros seriam de 8,2% em janeiro de 2031.
Outra forma de avaliarmos o movimento de reprecificação é através do acompanhamento dos retornos do IMA-S. Esse índice, calculado pela Anbima, é composto pelo estoque de todas as LFTs que existem no mercado e reflete a evolução dessa carteira hipotética marcada a mercado (ou seja, refletindo as condições do mercado a cada momento).
No ano, esse indicador já acumula uma alta de 2,03%, representado uma rentabilidade de 91,4% da taxa Selic, que está em paridade com o CDI:
Resumindo: a desvalorização da LFT, ou Tesouro Selic, é consequência da maior percepção de risco fiscal no Brasil, o que levou os investidores a pedirem mais prêmio no megaleilão realizado recentemente. No entanto, o efeito sobre os títulos é mínimo, de cerca de 0,2% e tende à estabilização.
O que esperar?
Caso não ocorra nenhum outro evento que impacte o balanço fiscal além do esperado, a nossa percepção é de convergência para um patamar de preços, com diferença de rentabilidades entre a LTN (título prefixado do Tesouro Nacional) e LFT mais estreita e uma estabilidade no prêmio demandado pelo mercado.
O que fazer?
Esse movimento de remarcação nas LFTs foi pontual e esse instrumento permanece como uma boa referência para aplicações conservadoras do mercado.
Vale destacar que ao olharmos um movimento mais recente, em uma janela mais curta, o efeito parece muito relevante. Já quando o olhamos em prazo mais longo, a variação passa praticamente despercebida. É importante termos isso em mente para não tomarmos decisões irracionais.
Em razão disso, continuamos enxergando as aplicações em Tesouro Selic como uma boa alternativa para reserva de emergência. O risco de crédito do título continua sendo o mais baixo do mercado e a liquidez diária significa que o resgate pode ser realizado a qualquer momento.
As distorções recentes podem ter causado estranhamento, mas, como mencionado, foi um caso pontual. Além disso, o efeito para o “pequeno investidor”, ou seja, nós, pessoa física, é muito pequeno (cerca de 0,2% na data do presente artigo – 23/09) e i) só tem efeito de perda em caso de venda do ativo; e ii) o efeito de queda é temporário – com o tempo, o título retornará ao seu comportamento normal e voltará a valorizar, como já ocorreu outras vezes.
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Fontes
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