O Tesouro Direto e o ano do endividamento fiscal
O ano de 2020 certamente ficará para a história como o “ano da Covid-19”. E será também lembrado como o ano das políticas contra-cíclicas, da injeção monetária e do estímulo fiscal.
Diante da rápida e acertada percepção de que a violenta disseminação de um vírus desconhecido da humanidade não é um “jogo justo”, governos ao redor do mundo lançaram mão de programas de ajuda emergencial e estímulo creditício em uma magnitude sem precedentes, alcançando a marca de 20% do PIB global em menos de 6 meses.
O Brasil não é uma exceção. No âmbito fiscal, as principais medidas implementadas incluem:
- O auxílio emergencial a pessoas em situação de vulnerabilidade financeira.
- O benefício emergencial de manutenção de emprego e de renda, visando trabalhadores formais com jornada e salários reduzidos.
- O auxílio financeiro aos estados e municípios, dada a substancial queda esperada na arrecadação.
Além disso, linhas de crédito financiadas ou com garantia do Tesouro Nacional foram implementadas a fim de garantir a manutenção de empregos e a sobrevivência de pequenas e médias empresas, como a concessão de financiamento para pagamento da folha salarial.
Nesse contexto, é um fato que governos sairão desta crise com maiores níveis de endividamento público, fruto do aumento de gastos necessário para arcar com medidas de combate à crise. No Brasil, estimamos que o salto seja de um patamar de 75,8% de dívida/PIB, no ano passado, para mais de 90% ao final de 2020, com rumo aos 100% nos próximos anos.
Tesouro Direto
E quem financia essa dívida? Investidores das mais variadas naturezas, incluindo aqueles que o fazem por meio do Tesouro Direto.
O Tesouro Direto é um programa criado pelo Tesouro Nacional para tornar os investimentos em títulos públicos federais mais acessíveis aos investidores pessoa física. Esta maior acessibilidade tem relação tanto com o valor mínimo das aplicações, uma pequena fração do valor total de um título, quanto com o meio pelo qual são feitas: através da internet.
Com a facilidade de investir no Tesouro Direto e a educação financeira cada vez mais difundida no Brasil, os investimentos neste programa têm crescido cada vez mais. Destaca-se, ainda, a segurança destes investimentos, o que também atrai novos investidores.
No entanto, diante de um cenário fiscal inegavelmente preocupante como o observado atualmente, é esperado que surjam questionamentos sobre a solvência do estado brasileiro e da segurança de investimentos no Tesouro Direto. Em bom português, surge a pergunta: “devo me preocupar sobre o risco de o governo brasileiro dar um calote, levando junto meus investimentos?”.
Curiosamente, esse receio não se apresenta da mesma forma para outras classes de ativos, o que pode ser até pouco racional, uma vez que o Tesouro Nacional tem o mais baixo risco de crédito dentre os ativos do país. Afinal, trata-se do risco soberano. Portanto, caso tenhamos preocupação com sua solvência (o que não é o caso), devemos ter preocupação ainda maior em relação a todos os outros ativos brasileiros.
Focando no argumento de que o risco soberano é o menor risco encontrado em qualquer economia, esse artigo destaca os principais pontos por trás do porquê de não acreditarmos que você deva se preocupar em ser vítima de um “calote do Tesouro Direto” – ao menos, não por ora.
O Brasil e o rating soberano: todos os caminhos levam ao grau de investimento?
Ao longo da história recente, o Brasil passou por diferentes fases em relação à situação das contas públicas e ao famoso “grau de investimento”.
Porém, antes de entrarmos na trajetória do Brasil no quesito grau de investimento soberano e entender o que isso significa na prática, é importante saber o que está por trás desse conceito.
Investment Grade – o selo do bom pagador
Em primeiro lugar, vale lembrar o que é rating: é uma nota atribuída por agências de classificação de risco de crédito a emissores, sejam eles empresas ou governos. Essa nota mede o risco de não pagamento das obrigações dos emissores – o conhecido “calote”. Quanto melhor o rating, menor o risco para os credores (investidores).
As agências de ratings possuem uma ampla “régua” para estas notas. Cada uma dessas agências tem a sua própria, mas elas se assimilam de diversas formas. Uma destas semelhanças é a partir de qual nível o rating pode ser considerado “grau de investimento”.
Esse conceito indica que o emissor apresenta baixíssimo risco, ou alta qualidade de crédito. A importância disso não se reflete apenas para os pequenos investidores, mas também (e talvez principalmente) para os grandes, como fundos de investimento ou fundos de pensão nacionais e internacionais, por exemplo.
Os investidores institucionais, como são conhecidos, costumam ter dentre os critérios de decisão na hora de escolher um ativo o rating dos emissores. Um destes critérios é justamente se o emissor é grau de investimento ou não. É como se fosse um “selo de aprovação” que indicasse a boa qualidade daquele investimento.
Aqui vale uma observação: este conceito só é válido em escala global. Para saber mais sobre isso, leia nosso artigo sobre ratings.
O Contexto histórico
1990-2000: a normalização monetária e a renegociação da dívida externa
A década de 1990 foi marcada pela implementação do Plano Real e a normalização da política monetária brasileira, após um calamitoso período hiperinflacionário no qual a inflação atingiu o extraordinário nível de 2.700% ao ano.
Foi também herança da década de 1980 uma longa renegociação da dívida externa acumulada na década anterior, marcada por sucessivos acordos com o Fundo Monetário Interacional (FMI), cujo insucesso levou à interrupção unilateral do pagamento dos juros da dívida pelo governo de José Sarney, em 1987. Um efetivo “default” (calote) da dívida com credores externos.
Implementada junto ao Plano Real e ao regime de câmbio flutuante no Brasil, a renegociação da dívida externa ao longo dos anos 1990 culminou com a “internalização” da dívida pública em processo conduzido pelo Tesouro Nacional no início dos anos 2000.
A “troca de mãos” do passivo brasileiro incluiu também a melhora do perfil da dívida, visando não somente reduzir a exposição cambial, mas também dar maior flexibilidade e liquidez ao gerenciamento do passivo, com a adoção de títulos indexados à inflação, e prefixados com prazos mais longos, com pagamentos de cupons periódicos de juros.
Nesse cenário, dávamos um primeiro e essencial passo rumo à solidez fiscal, que carregamos até hoje.
2000-2016: o grau de investimento
Após a renegociação da dívida externa e o processo de aprimoramento e modernização do perfil da dívida pública brasileira, a década de 2000 foi caracterizada pela implementação de importantes marcos fiscais.
Desenvolvido com o principal objetivo de evitar o desequilíbrio macroeconômico que marcou a economia brasileira das décadas anteriores, o arcabouço institucional fiscal vinha para completar o “terceiro pé” do ferramental conhecido como tripé macroeconômico, composto por um regime de câmbio flutuante e metas de inflação e fiscal.
O centro de tal arcabouço foi firmado na Lei de Responsabilidade Fiscal, sancionada em maio de 2000, e que segue em vigor até hoje. A LRF (como é conhecida) efetivamente criou as regras do jogo no palco fiscal, estabelecendo controles de gastos para as finanças não somente da União, mas também de estados e municípios.
Parte da LRF a obrigatoriedade da aprovação de contas pelos Tribunais de Contas, além do estabelecimento de uma meta fiscal para o governo federal e o detalhamento e aprovação de gastos na Lei Orçamentária. Descumpri-la é considerado crime de responsabilidade, passível de impeachment (como julgado no caso de Dilma Rousseff).
Apesar de relevantes falhas, como a atuação questionável de Tribunais a nível estadual e municipal, a LRF foi um verdadeiro marco na política econômica brasileira, e um dos motivos pelos quais em 2008 atingimos pela primeira vez o tão almejado grau de investimento.
Entretanto, escolhas de política econômica que seguiram a crise de 2008, caracterizadas principalmente pelo aumento de gastos públicos, o aumento substancial do crédito subsidiado, política monetária expansionista e alta da inflação, culminaram em um aumento de 17 pontos percentuais em nossa dívida/PIB e uma crise econômica, cujas raízes fiscais se prolongam até hoje. O resultado foi a perda do grau de investimento, em setembro de 2015.
A perda do “selo de aprovação” e a transição de graus de investimento
Quando observamos o histórico dos ratings soberanos do Brasil, vemos que nenhum rebaixamento ocorreu de uma hora para a outra, de forma inesperada. Todos os movimentos foram justificados e tiveram indicações prévias de que a qualidade de crédito estava piorando, mesmo que gradualmente.
Isto é importante de destacar, pois muitos investidores têm dúvidas sobre como identificar se a qualidade de crédito de um emissor está em risco.
As agências de ratings fazem um acompanhamento criterioso dos nomes que avaliam. De acordo com a regulação, elas devem reavaliar os emissores pelo menos uma vez ao ano.
No entanto, nada impede que os nomes sejam revisitados antes deste prazo, caso haja algum acontecimento que justifique uma nova análise, como por exemplo uma nova emissão de dívida de montante significativo, ou a aprovação de uma reforma tributária (no caso de um país).
Desta forma, os investidores ficam sempre informados a respeito da qualidade de crédito dos emissores. Vale notar que essas atualizações não são imediatas, pois as análises podem levar alguns dias, mas em geral este breve período não é prejudicial aos investidores.
É importante saber também que esses potenciais rebaixamentos ou elevações de ratings ao longo do tempo são, em sua grande maioria, feitos de forma lenta. Ou seja, raramente um emissor de alta qualidade de crédito dá um default enquanto ainda sustenta a nota elevada.
O caminho até um emissor ter problemas mais sérios em honrar com suas obrigações geralmente é longo e indicado de diversas formas, por exemplo através da gradual transição dos ratings até níveis mais baixos.
Em estudo realizado pela S&P Global Ratings em maio de 2020 sobre ratings soberanos globais, a agência apresentou que, de 1975 a 2020, a grande maioria (86,4%) dos emissores soberanos na categoria de rating ‘BB’ (nível do Brasil) permaneceram inalterados após um ano.
Cerca de 6% sofreram rebaixamento para a categoria ‘B’ um ano depois e pouco mais de 1% foram rebaixados a categorias que indicam vulnerabilidade a não pagamento (CCC/CC) ou, de fato, calote (SD/D). A notação “NR” significa que os emissores deixaram de ser avaliados (not rated).
Quando olhamos para um horizonte mais longo, de cinco anos, os percentuais se elevam, porém continuam baixos: cerca de 7% dos ratings inicialmente ‘BB’ são rebaixados para categorias de vulnerabilidade ou default.
Sendo assim, é possível afirmar que historicamente é raro observar defaults de emissores de qualidade de crédito igual ao nível atual do Brasil no curto a médio prazo. E mesmo que ocorram, são acompanhados ao longo do tempo, permitindo aos investidores tomarem decisões que não os prejudiquem.
De maneira similar, vale destacar que o processo de retomada do grau de investimento também não é imediato. Isso explica o porquê de não termos retomada do “selo” mesmo diante de importantes avanços nos últimos anos – como visto a seguir.
O processo de análise das agências de rating costuma ser bastante conservador e os analistas em geral buscam indicações muito sólidas de que determinadas decisões de fato se sustentarão ao longo do tempo e se traduzirão em avanços estruturais.
E hoje? Por que não precisamos nos preocupar com um “novo calote”?
A estrutura da Dívida Pública
Como falamos, o Brasil passou por importantes mudanças institucionais ao longo dos últimos 20 anos que foram fundamentais para a estabilização da situação de endividamento do país. A despeito da perda do grau de investimento, o arcabouço construído permitiu a construção de importantes “colchões”, que seguem até hoje essenciais para manter longe o fantasma do calote.
Reduzida dívida externa
Diferente do observado no passado e comparado a outros pares emergentes (exemplo mais vulnerável sendo a Argentina, com 60% do PIB em dívida externa estatal), a dívida pública brasileira hoje possui baixa exposição externa, tanto em termos de dívida emitida em moeda estrangeira (dívida externa), quanto em dívida atrelada ao câmbio.
Para ilustrar, a parcela da dívida pública federal denominada em moeda estrangeira, que já representou mais de 20% do total de nossa dívida mobiliária interna no final dos anos 1990, representa hoje apenas aproximadamente 5% do total.
Deste modo, mudanças na taxa de câmbio, apesar de relevantes para a economia como um todo, não geram impactos substanciais em nosso nível de endividamento.
Pelo contrário, considerando o nível de reservas internacionais acumuladas ao longo dos últimos anos, uma valorização cambial tem o efeito de reduzir o nível de endividamento em termos líquidos, contribuindo também para um importante ‘’colchão de proteção” frente instabilidades externas.
Colchão de liquidez
Outro importante fator a ser destacado no contexto da capacidade de financiamento do governo brasileiro é o mecanismo conhecido como colchão de liquidez. Tratam-se de recursos da chamada conta única do Tesouro Nacional no Banco Central (recursos da União registrados como passivos no balanço do Bacen), que possibilitam ao Tesouro pagar os títulos que vencem com o uso dos recursos de tal conta, não requerendo a emissão de novos títulos.
Na ausência de tal colchão, em momentos de maior incerteza, o Tesouro teria que emitir títulos a um custo elevado para pagar os títulos vincendos. Portanto, apesar de haver um custo atrelado ao uso de tais recursos (devido à necessidade do uso de operações compromissadas, cujo custo é igual a Selic e são contabilizados na dívida bruta), o saldo da conta única representa um importante mecanismo que confere ao Tesouro margem de manobra na gestão da dívida pública.
Para ilustrar, de acordo com dados do Banco Central do Brasil e do Tesouro Nacional, o valor da conta única atualmente (aproximadamente R$ 997 bilhões)¹ é mais do que suficiente para cobrir o saldo de pouco mais de R$250 bilhões em dívidas com vencimentos até o final deste ano.
Vale destacar, entretanto, que o colchão de liquidez tem sido a principal fonte de recursos para o financiamento de gastos extraordinários nesse ano (respondendo por mais de 90% das despesas primárias aprovadas em regime de emergência).
¹Dados de agosto de 2020
Dívida com prazos e credores diversificados
A evolução do perfil da dívida também representa um importante marco para a maior credibilidade do gerenciamento das finanças públicas. Hoje, podemos afirmar que a dívida pública tem a seu favor uma relevante diversificação de credores e prazos – especialmente comparada ao passado.
Do lado dos credores, vale destacar que além de pessoas físicas, investidores domésticos e internacionais de diferentes naturezas financiam a dívida do governo federal, proporcionando uma importante diversificação de riscos também importante àqueles que se financiam (assim como o é para investidores).
No que concerne a “duration” e o perfil dos títulos que compõe a dívida, a despeito do relativo encurtamento recente e da ainda relevante proporção atrelada à inflação, é notável a evolução positiva do perfil da dívida nos últimos anos – o que permitiu o alongamento e diversificação de indexadores favoráveis ao gerenciamento da dívida.
Reformas fiscais e o contexto atual
Por fim, vale destacar os desenvolvimentos do lado fiscal. Após a perda do grau de investimento em 2015, os anos que se seguiram foram marcados pela tentativa de recuperação da credibilidade fiscal.
Entre 2016 e 2019, aprovamos importantes reformas de cunho fiscal, que apesar de não reverterem o quadro de alto endividamento como proporção do PIB no curto prazo, foram bem-sucedidas em sinalizar um compromisso com a manutenção da saúde das contas públicas no longo prazo por meio de um ajuste gradual.
Nesse contexto, vale destacar a aprovação do teto de gastos (por meio de mudança constitucional que estabeleceu o congelamento das despesas do governo federal em termos reais por no mínimo 10 anos), da reforma da previdência (que implementou uma redução gradual no maior gasto do orçamento federal), e da mudança da TJLP para taxas de mercado – taxa de juros praticada pelo BNDES, cujo subsídio do Tesouro foi responsável por boa parte do endividamento no período, além de reduzir a eficácia da política monetária.
Tais mudanças no âmbito fiscal permitiram não somente a queda sustentada da inflação e da taxa básica de juros de curto prazo (a taxa Selic), mas também a redução da perspectiva do mercado sobre a trajetória de juros futuros no Brasil – uma importante sinalização de credibilidade de política monetária.
E foi sob esse contexto que fomos atingidos pela crise do coronavírus. Com inflação sob controle, pudemos responder à crise com substanciais reduções da taxa básica de juros, reduzindo não somente o custo do endividamento de empresas e famílias, mas também o peso dos juros incidente sobre a crescente dívida pública, e com ele, uma das faces mais nefastas no caminho da insolvência.
Finalmente, o controle da inflação e a redução dos juros permitiu também ao Tesouro Nacional seguir, até então, emitindo novos títulos sob taxas relativamente baixas mesmo diante da situação adversa em que nos encontramos – títulos esses usados em conjunto com o colchão de liquidez para a rolagem da dívida.
Nesse sentido, vale ressaltar o encurtamento do prazo observado em novas emissões como sinalização da gradual deterioração das expectativas sobre a situação fiscal futura, reforçando a importância da manutenção dos gastos sob controle no pós pandemia.
Conclusão
A história econômica no Brasil é marcada por crises e desafios no âmbito do endividamento e da saúde das contas públicas, e o caminho para a credibilidade fiscal não é simples e nem será rápido – especialmente após a crise atual.
No entanto, os avanços institucionais observados nas últimas décadas e as ferramentas disponíveis ao gerenciamento da dívida não podem nem devem ser negligenciados, mesmo diante de grandes riscos como os observados hoje na frente fiscal.
Em um contexto onde o caminho entre o desafio fiscal e a insolvência é longo – passando antes por graves períodos inflacionários, aumento de risco país, redução de grau de investimento, pressão cambial, fuga de capitais e até renegociação – hoje não vislumbramos reais problemas de solvência do nosso Tesouro, ainda vendo nesse ativo o menor risco de crédito no Brasil.
Pelo contrário, acreditamos que hoje ainda temos boas oportunidades de investimento no Tesouro Direto. Além do baixo risco, hoje os títulos públicos de vencimento longo ainda apresentam taxas mais elevadas para novos investimentos do que aquelas oferecidas no começo do ano, por exemplo. Isso porque ainda estamos em um cenário relativamente mais incerto do que há seis meses.
De todo modo, mesmo que as taxas reduzam, acreditamos que o investimento em Tesouro Direto é uma excelente alternativa para quem busca aplicar sua reserva de emergência (Tesouro Selic) ou para quem tem objetivos claros e deseja previsibilidade, tanto em termos de segurança quanto de prazo.
E tudo isso lembrando que não apostaríamos nossas fichas em um calote soberano no momento – e é sempre possível acompanhar qualquer sinal de alerta para tomar as melhores decisões.
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