- Nas últimas semanas, aumentou o debate sobre um novo programa social do governo, que turbinaria o Bolsa Família. As transferências de renda ocorreriam nos mesmos moldes do programa atual, com possíveis ajustes de critérios para ampliar o número de famílias contempladas e estabelecer um valor mais alto para o benefício médio (além da alteração do nome);
- O novo programa precisa se adequar ao arcabouço fiscal. Estimamos o espaço no teto de 2022 para aumento de gastos em R$ 31,8 bilhões, o que limita a expansão ou introdução de despesas. Além disso, é preciso atender às restrições da LRF sobre criação de despesas continuadas;
- Assim, a necessidade do programa pode significar risco de novas pressões sobre as regras fiscais durante a tramitação do PLOA 2022;
- Considerando a restrição do teto, com corte de outras despesas com multiplicador menor, estimamos um efeito positivo de 0,15 pp no PIB de 2022;
- Se o programa for feito além do teto, o impacto isolado seria de 0,5 pp (pois não demandaria ajuste em outras despesas). Mas a provável piora nas condições financeiras geradas pela mudança no arcabouço fiscal tenderia a anular este efeito;
- De toda forma, julgamos a discussão pertinente. Programas como este representem um “bom gasto”, haja vista sua eficiência para a redução da má distribuição de renda e da extrema pobreza. Isso torna-se particularmente importante no pós-pandemia.
Arcabouço fiscal: espaço no teto e compensação da LRF
Espaço no Teto de Gastos
Há espaço no teto de gastos de 2022 em diante para acomodar o programa? Qual o tamanho?
Pela regra constitucional, o limite de despesas cresce de acordo com a inflação do IPCA acumulado em 12 meses até junho do ano anterior. Nossa projeção indica que a inflação alcançará 8,46% nesta métrica (o IPCA de junho, que fecha essa conta, será divulgado em 08 de julho).
Desta forma, o teto de gastos de 2022 será de R$ 1.485,9 bilhões x 1,0846 = R$ 1.611,6 bilhões, segundo nossas estimativas. Ou seja, o teto aumentará em R$ 125,7 bilhões.
As despesas obrigatórias também se elevam, ocupando boa parte deste aumento. O INPC de 2021, que reajusta despesas previdenciárias e salário mínimo, deve fechar em 6,4%. Isto representa um aumento de R$ 49 bilhões em correções automáticas de aposentadorias, pensões e benefícios com o BPC.
Além disso, há o crescimento vegetativo da folha de ativos e inativos, novos concursos já autorizados, o aumento de gastos com saúde e educação por conta dos mínimos constitucionais, aumento de sentenças judiciais, entre outros.
Nossas contas, usando estimativas próprias e alguns parâmetros fornecidos pelo governo, sugerem um aumento total de despesas obrigatórias de R$ 93,9 bilhões (ver tabela abaixo).
Desta forma, o espaço no teto para um aumento de despesas – como seria o novo Bolsa Família – totalizaria R$ 31,8 bilhões.
Contudo, que nossas contas se baseiam no cenário que consideramos mais provável para as despesas. A Secretaria do Orçamento Federal (SOF), ao elaborar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), usualmente opta, corretamente, por um cenário conservador. Desta forma, vemos como altamente provável que o espaço observado na PLOA, que ao fim é o que importa para o tamanho do programa que poderá ser aprovado, seja menor do que este que estimamos.
Em entrevista, o Presidente Jair Bolsonaro chegou a sugerir um aumento das famílias atendidas de 14,6 para 17,0 milhões, e uma elevação no valor médio do benefício de 189,00 para 284,00 reais. Para que isso seja possível, nossos cálculos indicam um aumento do orçamento atual do Bolsa-Família próximo a R$ 25 bilhões (de R$ 33,5 bilhões para R$ 58,0 bilhões). Este montante provavelmente ocuparia todo o espaço adicional do teto do ano que vem contemplado no PLOA (ou perto disso). Não restando espaço para outras possíveis demandas, com aumento de salários do funcionalismo ou investimento.
Reportagens recentes do jornal Folha de São Paulo, por sua vez, indicam que o programa seria modulado para um aumento de R$ 20 bilhões. Parece mais factível, embora a margem seguiria estreita.
Necessidade de compensação da LRF
Este tema é mais difícil, pois depende de uma interpretação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Objetivamente, a LRF demanda apontar compensação, com aumento de receita ou corte de gastos, para uma nova despesa recorrente.
Dois caminhos têm sido mencionados recentemente para atender (ou contornar) esse fator. O primeiro é o argumento de que programas como o Bolsa Família não representam necessariamente um gasto recorrente. No caso atual, para uma família ter acesso ao programa, é preciso cumprir os requisitos e haver orçamento aprovado para tal. Uma evidência disso é que existe fila: ou seja, famílias que são elegíveis para o benefício, mas que não o recebem porque não há orçamento.
Neste caso, seria possível construir a tese jurídica de que não é preciso haver compensação por não se tratar necessariamente de um gasto obrigatório recorrente. Na ausência de orçamento, cortes poderiam ser realizados.
Há debate no governo sobre a pertinência jurídica deste argumento. Mas, do ponto de vista fiscal e político, parece claro: muito dificilmente um aumento relevante de uma despesa desta natureza poderia ser cortado no ano seguinte.
Um outro caminho foi abordado por matérias do jornal Folha de São Paulo no início desta semana[1]. A sugestão é usar o aumento de arrecadação contido na recente proposta de reforma tributária sobre a renda enviada ao Congresso (PL 2337).
A proposta é, em teoria, neutra do ponto de vista de arrecadação, segundo o governo. Mas a parte de diminuição de impostos é feita via redução linear do Imposto de Renda, não representando, portanto, uma redução discriminada de tributos. Desta forma, de acordo com a LRF, esta renúncia de receita não precisa de compensação, liberando parte do aumento de tributos (sobre dividendos) para ser usada como compensação em outra despesa – como a do novo Bolsa Família.
Juridicamente, este argumento parece mais sólido, e deve ser realmente a estratégia do governo, como indica matéria do jornal O Estado de São Paulo[2]. Mas isso depende da aprovação da reforma tributária conforme proposta, o que enfrentará grande resistência no Congresso pelo aumento de carga que representa ao setor produtivo.
Em suma, é possível que as regras fiscais vigentes permitam o programa, mas com espaço limitado. O teto de gastos de 2022 ficará apertado, especialmente porque haverá disputa com outras despesas, como pressão por aumento de salários de servidores e investimentos públicos). E não é garantido que a ampliação do programa atenda às exigências da LRF.
Desta forma, se o aumento do programa for uma decisão política importante para o governo, há risco de novas pressões por alteração do atual arranjo fiscal durante a tramitação do PLOA de 2022.
Impactos sobre a Atividade Econômica
Em que pese a incerteza ainda elevada sobre as mudanças que serão efetivamente propostas pelo governo, esta nota traz simulações preliminares dos impactos potenciais da reformulação do programa sobre o desempenho da atividade econômica no próximo ano.
Premissas
Para estimarmos o impacto potencial das mudanças do programa, assumimos que: (i) o número de famílias participantes aumentaria dos atuais 14,6 milhões para 17,0 milhões em 2022; e (ii) o valor do benefício mensal médio subiria de cerca de R$ 190 para R$ 284 a partir de jan/22.
Além dessas hipóteses, merece atenção especial a forma de tratamento das despesas primárias adicionais no programa de transferência de renda. Conforme indicado na seção anterior, nosso cenário base considera a manutenção dessas despesas como sujeitas ao teto constitucional de gastos (EC 95/2016).
Em um cenário alternativo, os gastos adicionais seriam tratados como “extra teto” no próximo ano. Pressões políticas por expansão de dispêndios públicos de diferente natureza estariam por trás da materialização deste tipo de cenário.
Resultados das Simulações e Impacto no Cenário de Crescimento do PIB
Em caso de manutenção das despesas majoradas com transferências de renda sob o teto de gastos e, com isso, redução equivalente de outras despesas, calculamos que o impacto líquido sobre a variação real do PIB total de 2022 seria de até 0,15 ponto percentual.
A despeito do mesmo montante total de despesas públicas em tal cenário (limitado pela regra do teto), a adição ao PIB estimada pelos nossos exercícios decorreria do maior “efeito multiplicador” do programa de transferências de renda (tomando como base o Bolsa-Família em vigência) em relação a outros tipos de despesas governamentais. Por exemplo, aumentos de salários aos servidores públicos tendem a gerar efeitos indiretos sobre o consumo inferiores àqueles oriundos da expansão da renda das famílias mais pobres, que tipicamente gastam percentuais mais altos dos recursos disponíveis frente a outras faixas da população.
Neste exercício, adotamos 1,7 como multiplicador de renda do programa Bolsa-Família (estimativa mantida para as simulações envolvendo o novo programa de transferências). Alguns estudos acadêmicos importantes exploraram esta temática nos últimos anos (exemplos: Cury, Mori Coelho, Callegari & Pedrozo, 2010; Landim, 2009; Neri, Vaz & Souza, 2013; Silva, 2014; Denes, Komatsu & Menezes-Filho, 2018).
Estimamos que os gastos anuais com o programa de transferência de renda aumentariam em quase R$ 25 bilhões em 2022 (de aproximadamente R$ 33,5 bilhões na configuração atual para R$ 58,0 bilhões no caso de ampliação do número de famílias beneficiárias e valor mais alto do benefício mensal médio, partindo das premissas já apresentadas – memória de cálculos sob demanda). Em relação ao PIB Nominal esperado para 2022, a reformulação do programa representaria um acréscimo de 0,3 ponto percentual.
Somando este impacto direto ao “efeito multiplicador” dos gastos adicionais, chegamos a uma contribuição potencial de até 0,52 ponto percentual sobre o crescimento do PIB em 2022. Em nosso cenário base, conforme já discutido, o efeito líquido total seria mais baixo (até 0,15 ponto percentual), pois a expansão do programa social seria acompanhada pela redução de outras despesas primárias sujeitas à regra do teto.
Cenário “extra teto”
No caso do cenário alternativo, em que a expansão de gastos sociais seria “extra teto”, o impacto líquido sobre o PIB total teria elevado grau de incerteza. Isso porque o aumento das despesas primárias totais provavelmente implicaria alguma piora nas condições financeiras, devido à maior percepção de risco fiscal.
Esta deterioração causaria impactos negativos (tudo o mais constante) sobre decisões de investimento e consumo e, portanto, atuaria na direção contrária ao maior impulso fiscal. O efeito altista direto das (maiores) transferências de renda sobre o PIB de 2022 seria então compensado, ao menos parcialmente.
Nossa projeção para o crescimento real do PIB de 2022 está em 2%. A implementação do novo programa de transferências de renda (respeitando a regra do teto de gastos) implicaria um ligeiro viés de alta a tal expectativa.
A discussão, de toda forma, é pertinente
De toda forma, para além do efeito imediato no PIB, um aumento do programa Bolsa Família (dentro do teto de gastos) nos parece bem-vindo. Diversos estudos acadêmicos mostram a efetividade do programa em reduzir a desigualdade de renda no Brasil e melhorar outros indicadores sociais, como níveis educacionais e acesso ao mercado de trabalho[3].
Conforme apresentado em detalhes pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em seu último relatório World Economic Outlook, o cenário pós-pandemia deverá ser caracterizado pela elevação dos níveis de desigualdade social na maioria dos países. Com isso, discussões sobre a ampliação de gastos sociais efetivos e focalizados passam a ter importância ainda maior. Isso reforça a avaliação de pertinência do programa de transferências de renda discutido neste relatório.
Referências
[1] “Governo quer usar reforma tributária para bancar novo programa social” (Folha de São Paulo, 28/jun)
[2] “Governo atrela valor do novo Bolsa Família à taxação de lucros e dividendos” (Estadão online, 30/jun).
[3] Dentre esses estudos estão: (i) Souza, P.H.G.F; Osorio, R.G.; Paiva, L.H.; Soares, S. 2019. Os efeitos do programa Bolsa Família sobre a pobreza e a desigualdade: um balanço dos primeiros 15 anos. (II) De Brauw, A.; Gilligan, D.O.; Hoddinott, J.; Roy, S. 2015. The Impact of Bolsa Família on Schooling. (III) Consonni, P.S.; Souza, P.C.L.; Zilberman, E. 2018. Bolsa Família and formal employment: evidence from Brazilian municipalities. E (IV) Dourado, A.; Carvalho, R.N.; van Erven, G.C.G. 2017. Brazil’s Bolsa Família and Young Adult Workers: A Parallel RDD Approach to Large Datasets.
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