- As vendas no varejo se recuperaram fortemente em 2020, turbinados por intensa transferência de renda, juros baixos e uma esperança (que não se confirmou) de fim da pandemia. Entre os setores, os segmentos mais sensíveis à renda apresentaram o melhor desempenho.
- No entanto, os condicionantes do consumo vinham piorando desde o final do ano passado, e já pesavam sobre as vendas. O recrudescimento da crise sanitária, a inflação pressionada e juros em alta tornam o cenário ainda mais desafiador. Além disso, a recuperação da renda do trabalho tem sido tímida, apesar da melhoria na geração de empregos.
- Qual a magnitude da queda do consumo privado no curto prazo? E quando haverá recuperação?
- Em que pese a incerteza elevada e o conjunto ainda limitado de dados, estimamos contração das vendas do comércio em cerca de 6,5% no 1º trimestre de 2021, em comparação com o 4º trimestre de 2020. O 2º trimestre deve apresentar queda adicional. De fato, nossas estimativas sugerem que a massa de renda ampliada disponível recuará cerca de 8% no 1º semestre de 2021 ante o 2º semestre de 2020, mesmo com a volta do auxílio emergencial.
- A vacinação e gradual reabertura das atividades produtivas devem proporcionar retomada do consumo no segundo semestre.
- Projetamos expansão de 2,7% para o consumo das famílias (pela ótica do PIB) em 2021. Para 2022, nossas simulações sugerem crescimento de 2,1%. Com isso, o indicador retornaria ao patamar pré-pandemia na metade do próximo ano.
Retrovisor: a forte retomada do 2º semestre de 2020, anabolizada por transferências de renda
O volume de vendas do comércio varejista exibiu recuperação relativamente rápida em 2020, após severa contração causada pela pandemia na primeira metade do ano. Conforme publicado pela Pesquisa Mensal do Comércio (PMC) do IBGE, as vendas reais do varejo ampliado retornaram ao patamar pré-pandemia (fev/20) já em agosto. Massivos estímulos fiscais para sustentação de renda e emprego – destaque para a injeção de quase R$ 300 bilhões via Auxílio Emergencial –, política monetária expansionista e retomada da confiança sustentaram esta dinâmica favorável. Ademais, é importante frisar o deslocamento do consumo de serviços para o mercado de bens ao longo da pandemia, sobretudo durante os períodos de maior rigidez das medidas restritivas de distanciamento social.
Entretanto, cabe ressaltar diferenças setoriais importantes em tal processo de retomada do varejo. Os segmentos mais sensíveis à renda entraram em trajetória de crescimento mais rápida e fortemente, como reflexo das medidas emergenciais de transferência direta de recursos, antecipação do pagamento de benefícios (ex: previdenciários e abono salarial), diferimento do pagamento de alguns tributos e acordos de preservação de vínculos empregatícios (Figura 1). Neste sentido, destaque para o comportamento das vendas dos seguintes grupos: outros artigos de uso pessoal e doméstico; artigos farmacêuticos, médicos, ortopédicos e de perfumaria; supermercados, alimentos, bebidas e fumo. Por exemplo, em novembro do ano passado, os níveis de vendas reais desses segmentos superavam os patamares pré-pandemia (fev/20) em 14,9%, 12,7% e 2,0%, respectivamente. Além das iniciativas governamentais para sustentação de renda e emprego, a adaptação à realidade de maior distanciamento social (maior tempo de permanência nas residências) e a natureza essencial de diversos produtos desses grupos contribuíram para sua dinâmica relativamente favorável.
Os segmentos varejistas mais sensíveis a crédito também mostraram reação ao longo do 2º semestre de 2020, mas com intensidade menor e perdas acumuladas. A despeito da política monetária acomodatícia (taxa Selic a níveis historicamente baixos) e de medidas governamentais também voltadas ao mercado de crédito, o aumento da percepção de risco e a maior discricionariedade dos produtos de tais agrupamentos setoriais explicam a recomposição mais moderada de suas vendas. Ainda assim, chamou a atenção a retomada de dois segmentos específicos: materiais de construção e móveis e eletrodomésticos, possivelmente refletindo um movimento de antecipação de consumo. Em sentido contrário, as vendas de veículos, vestuário e equipamentos de escritório, informática e comunicação sofreram perdas significativas (Figura 2).
Desaceleração desde novembro/20, apesar do rebote projetado para fevereiro
Em linhas gerais, a dinâmica do comércio varejista em 2020 surpreendeu positivamente grande parte das expectativas formadas após a deflagração da crise de saúde pública no 1º trimestre daquele ano. O ritmo de recomposição das vendas variou consideravelmente, e alguns segmentos do comércio, especialmente os mais sensíveis aos níveis de renda, chegaram a acumular ganhos líquidos no período.
Contudo, os principais indicadores de consumo privado começaram a desacelerar no final do ano passado. Com base na PMC, as vendas do varejo ampliado acumularam queda de 4,7% entre novembro e janeiro, ao passo que o conceito de varejo restrito (exclui veículos e materiais de construção) exibiu retração de 6,5% no período (Figura 3). Além disso, os dados referentes a fev/21 (divulgação em 13/04) tendem a exibir uma compensação somente parcial deste recuo.
Estimamos alta de 2,0% para o volume de vendas reais do varejo ampliado ante o primeiro mês de 2021 (-4,2% ante fev/20) – regredimos o indicador mensal do comércio ampliado em relação ao: (i) licenciamento de veículos divulgado pela Fenabrave; (ii) índice de atividade do comércio para o segmento ‘Supermercados’ publicado pela Serasa Experian – o indicador equivalente da Abras (Associação Brasileira de Supermercados) tem sido disponibilizado com maior atraso em comparação ao período pré-pandemia; (iii) índice de atividade do comércio para o segmento ‘Móveis e Eletrodomésticos’ também publicado pela Serasa Experian; e (iv) índice de confiança do consumidor divulgado pela FGV. Para as vendas reais do varejo restrito, por sua vez, esperamos elevação mensal de 0,9% entre janeiro e fevereiro (-3,4% em comparação a fev/20) – neste caso, regredimos o indicador mensal do comércio restrito em relação aos índices de atividade do comércio para os segmentos de (i) ‘Supermercados’, (ii) ‘Móveis e Eletrodomésticos’ e (iii) ‘Tecidos, Vestuário, Calçados e Acessórios’ divulgados pela Serasa Experian, além do (iv) indicador de confiança do consumidor.
Em nossa avaliação, o arrefecimento do comércio varejista nos últimos meses reflete fatores como aumento da inflação (explicada tanto por choques de oferta quanto de demanda); menor volume de auxílios emergenciais transferidos pelo governo (‘fiscal cliff’); antecipação de compras de bens (principalmente duráveis) ao longo do 2º semestre de 2020; e antecipação do pagamento de parte dos benefícios de aposentados e pensionistas em meados do ano passado (a maioria desses recursos são tipicamente disponibilizados ao final do ano).
O enfraquecimento da demanda deverá ficar ainda mais nítido daqui para frente. O recrudescimento da crise sanitária da Covid-19 ao longo das últimas semanas – e as subsequentes medidas mais restritivas de distanciamento social – tornará o cenário bastante desafiador aos consumidores. Vale ressaltar que a piora da pandemia ocorre em um contexto de recuperação modesta do mercado de trabalho local, dado o elevado contingente de desempregados (sobretudo no setor informal) e níveis deprimidos de salários reais.
Segunda onda, segundo tombo. Qual a intensidade?
Como reflexo da deterioração de importantes condicionantes de consumo e da sensível piora da pandemia – os números de casos e fatalidades de Covid-19 vêm renovando recordes diariamente –, os indicadores de confiança de consumidores e empresários sofreram abrupta reversão de tendência e registraram queda alarmante nas leituras de março. Por exemplo, a confiança do consumidor da FGV recuou 9,8 pontos em relação a fevereiro (de 78,0 para 68,2 pontos, com base na série dessazonalizada), atingindo o menor nível desde junho de 2020. Na mesma métrica, a confiança do comércio da FGV declinou expressivos 18,5 pontos no mesmo período, após ajuste sazonal, chegando também ao menor patamar desde junho do ano passado (Figura 4).
Diante deste quadro, questiona-se: ‘Qual a magnitude da queda do consumo privado? E quando haverá recuperação?’ Em que pese as incertezas do atual cenário e o conjunto limitado de dados atrelados ao desempenho da atividade varejista em março, julgamos válido discutir a seguir algumas estimativas preliminares.
Pulso do consumo corrente: “fotografia de momento”
Inicialmente, utilizamos um modelo que relaciona, com dados mensais a partir de set/05, o volume de vendas reais do varejo ampliado (PMC) com as seguintes variáveis: (i) massa de renda real ampliada disponível (proxy própria construída a partir de dados de rendimento efetivo do trabalho; benefícios de proteção social; benefícios previdenciários; saques do FGTS; tributação sobre renda do trabalho; e auxílios emergenciais de enfrentamento à pandemia); (ii) concessões de crédito para pessoas físicas (recursos livres) em termos reais, que são bastante correlacionadas com o consumo de bens duráveis e semiduráveis; e (iii) índice de confiança do consumidor publicado pela FGV. Com base em premissa de estabilidade na margem (entre fevereiro e março) do indicador de confiança e das concessões de crédito PF, além de ligeira queda de 0,7% para nossa proxy de massa de renda real no período, obtém-se uma estimativa de recuo de 0,9% para o comércio varejista ampliado em março, após ajuste sazonal (+5,3% entre mar/21 e mar/20). No caso do indicador de varejo restrito, por sua vez, o exercício aponta para declínio de 1,4% na mesma métrica. Este exercício simplificado aplica o método de Mínimos Quadrados Ordinários para o período amostral entre set/05 e fev/21 (estimativa para fev/20 obtida pela especificação descrita na seção 2 deste relatório), considerando as transformações logarítmicas das variáveis em nível e dummies sazonais mensais.
Este tipo de simulação procura extrair alguma sensibilidade sobre o comportamento das vendas do comércio se o cenário pandêmico não tivesse se deteriorado significativamente nas últimas semanas, o que, evidentemente, não tem utilidade preditiva no atual contexto de forte restrição de circulação e interrupção de atividades produtivas. Como passo adicional, utilizamos uma versão reduzida das relações expostas acima, que regride as vendas reais do varejo somente contra o índice de confiança do consumidor (houve divulgação recente dos dados preliminares da Sondagem do Consumidor da FGV); este exercício indica contração de 5,5% para o varejo ampliado na passagem de fevereiro para março, descontadas as influências sazonais (-1,8% entre mar/21 e mar/20). Já para o indicador de varejo restrito, a contração estimada seria de 3,8% na mesma métrica.
Ou seja, o declínio da confiança dos consumidores já aponta para recuo expressivo das vendas do comércio em março. Ainda assim, nota-se a dificuldade em prever a magnitude desta contração. Há poucos indicadores coincidentes disponíveis até o momento e as séries de dados apresentaram “quebras” relevantes no período recente. Por isso, o acompanhamento de fontes alternativas de informações (números de maior frequência) auxilia no processo de estimação. Dentre essas, temos monitorado dados diários e/ou semanais de mobilidade social (neste caso, do grupo de ‘Varejo e Lazer’); consumo setorial de energia elétrica; e transações com cartões de débito/crédito em máquinas de adquirência. Esse conjunto de informações sinaliza, segundo nossa leitura preliminar, risco elevado de uma retração mais acentuada do comércio ante o sugerido pelas estimações econométricas usuais: com tal conjunto abrangente de indicadores, esperamos queda próxima a 10% para o varejo ampliado em março, em relação ao mês imediatamente anterior. Com isso, o volume de vendas declinaria 6,5% no 1º trimestre de 2021 ante o 4º trimestre de 2020 (Figura 5). Na mesma base de comparação, esperamos que as vendas do varejo restrito contraiam cerca de 7% em março e cerca de 5,5% no 1º trimestre deste ano.
A queda acentuada em março implicará em carregamento estatístico muito ruim para o desempenho do varejo no 2º trimestre: -4,2% e -6,2% para os conceitos restrito e ampliado, respectivamente, segundo nossos cálculos. Acreditamos em recuo adicional das vendas do comércio em abril, seguido por elevações na margem a partir de então, dinâmica semelhante àquela observada no ano passado.
Novas rodadas de medidas emergenciais de enfrentamento à pandemia estão no radar, com destaque ao (já anunciado) retorno do Auxílio Emergencial, que deverá ser pago aos indivíduos considerados mais vulneráveis ao longo dos próximos meses. Ademais, acreditamos em nova versão do programa Bem – Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda. No entanto, essas medidas de recomposição de renda e suporte ao emprego devem ter escala consideravelmente menor em relação ao implementado em 2020 – a PEC Emergencial (PEC 186/19), promulgada em 15/03, limitou o pagamento do novo auxílio emergencial a R$ 44 bilhões, montante adotado como hipótese em nossos cálculos para o período entre abril e julho. No que diz respeito à nova rodada do Bem, utilizamos como premissa gastos totais ao redor de R$ 10 bilhões, também desembolsados neste período de quatro meses (Figura 6).
Segundo nossas estimativas, a massa de renda real ampliada disponível recuará quase 8% entre o 2º semestre de 2020 e o 1º semestre de 2021, após ajuste sazonal, em grande medida devido à menor massa de renda de proteção social.
Para o 2º semestre, projetamos aumento de 3,5% ante os primeiros seis meses do ano, em linha com a retomada de crescimento da renda do trabalho.
2º semestre e 2022: a retomada gradual
Em síntese, a recuperação modesta da massa de rendimentos do trabalho, piora da pandemia e menor volume de recursos governamentais para mitigação de seus efeitos irão diminuir a capacidade de consumo no curto prazo. No caso do componente de massa de renda real ampliada, por exemplo, a dinâmica mais favorável esperada para o 2º semestre não evitará uma contração acumulada ao redor de 7,5% na comparação entre 2021 e 2020. Além disso, as condições monetárias tendem a ficar mais apertadas: a taxa básica de juros entrou recentemente em ciclo altista (projetamos Selic a 5% ao final deste ano), e o aumento da percepção de riscos fiscais exerce pressão significativa sobre os juros de mercado.
Por outro lado, avaliamos que o combate à crise sanitária segue com papel protagonista na formação de visões prospectivas para a atividade econômica e, nesta seara, nossa avaliação tem ficado mais construtiva (Figura 7). A maior disponibilidade de doses (inclusive de empresas/consórcios diferentes) e o ganho de velocidade em sua aplicação provavelmente implicarão em encurtamento do período de manutenção das medidas mais rígidas de isolamento social na comparação com o observado em 2020.
Segundo estudo divulgado pela XP (para mais informações, ver “Quando o Brasil terá vacinado os idosos e profissionais da saúde?”, disponível aqui, o mais provável é que todos os profissionais da saúde e idosos com mais de 60 anos estejam vacinados até o começo de junho, com algum viés positivo (isto é, vacinação deste contingente um pouco antes) sobre tal processo. Considerando as hipóteses e curvas de vacinação projetadas pelo estudo, acreditamos em flexibilização gradativa (de grande parte) das medidas de distanciamento social a partir do início de maio. O grau de incerteza acerca da evolução da crise sanitária da Covid-19 permanece muito elevado e, por isso, as premissas adotadas neste relatório precisam ser acompanhadas (e eventualmente confrontadas) de forma contínua.
Com o conjunto de hipóteses destacado acima, aplicamos outra modelagem com o intuito de projetar a dinâmica do consumo privado a médio prazo (Figura 8). Para isso, utilizamos um modelo de Vetores AutoRegressivos (VAR) com dados trimestrais entre o 4º trimestre de 2006 e o 4º trimestre de 2020, que relaciona as seguintes variáveis: (i) PIB de Consumo das Famílias (divulgado pelas Contas Nacionais Trimestrais); (ii) massa de renda real ampliada disponível , já apresentada neste estudo; (iii) juro real ex-ante – construído a partir dos juros (swaps) de 360 dias descontados pelas expectativas de inflação 12 meses à frente; (iv) índice de confiança do consumidor da FGV; e (v) taxa de câmbio real – proxy baseada na relação de inflação entre Brasil e EUA (tratada como variável exógena). A especificação do modelo utiliza taxas de variação interanual (exceto para as taxas de juros), e os critérios de informação apontaram para a seleção de 1 trimestre como defasagem ótima para o modelo.
Considerando as limitações do modelo no que diz respeito a variações “atípicas” na margem – tais como as advindas dos choques da pandemia –, adotamos a seguinte estratégia de simulação: (i) atribuímos, para os dois primeiros trimestres de 2021, valores específicos para as variáveis de massa de renda, juro real, confiança do consumidor e câmbio real – nesta etapa, assumimos retorno do índice de confiança do consumidor ao patamar de fev/20 (78 pontos) no final do 2º trimestre; queda semestral (já mencionada) de aproximadamente 8% para a massa de renda; aumento do juro real ex-ante de 1,1% para 1,8% no período; ligeira apreciação de 3% para a taxa de câmbio real; e (ii) para o período entre o 3º trimestre de 2021 e 4º trimestre de 2022, obtemos os valores da solução endógena do modelo.
Desta forma, estimamos, por ora, quedas de 0,4% e 0,9% para o PIB de Consumo das Famílias no 1º e 2º trimestres deste ano, respectivamente (comparação com o trimestre imediatamente anterior, após ajuste sazonal). A partir de então, o indicador cresceria de forma consecutiva, com destaque à forte recuperação no 3º trimestre. No ano de 2021 como um todo, esperamos crescimento de 2,7% para o Consumo das Famílias - o carregamento estatístico (carryover) para o indicador este ano é 2,1%.
Esses números são compatíveis com a previsão de alta de 3,2% para o PIB Total no ano corrente. Para o 1º trimestre, nossa estimativa atual é de ligeira elevação de 0,1% (a próxima divulgação das Contas Nacionais Trimestrais do IBGE ocorrerá em 01/06). Estimativas adicionais para a dinâmica trimestral do PIB e sua abertura entre os principais componentes de oferta e demanda serão apresentadas em nossos próximos relatórios de atividade econômica.
Para 2022, nossas simulações sugerem crescimento de 2,1% para o PIB de Consumo das Famílias. A curva projetada (Figura 9) indica que tal componente da demanda doméstica retornaria ao patamar pré-pandemia na metade do próximo ano.
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