Após dias de discussões na segunda-feira (28), líderes do governo e do Congresso anunciaram conjuntamente a proposta para o novo programa de transferência de renda – denominado agora de “Renda Cidadã”. O novo programa amplia o orçamento do Bolsa Família, mantendo suas linhas gerais. O número de beneficiários (hoje 14 milhões de famílias) e o valor médio do benefício (R$190) aumentariam.
Diante do sucesso quase consensual do Bolsa Família, em termos de seus impactos positivos para a redução da pobreza e do aumento da presença de crianças na escola, pode-se concluir que a reação aumento do programa deveria ser positiva. Especialmente no contexto da Pandemia do Coronavirus, no qual o auxílio emergencial e outras medidas de suporte tem desempenhado papel essencial para a recuperação da economia.
Porém, o que vimos nos preços do mercado financeiro foi o oposto. Indo na contramão dos mercados globais, a bolsa brasileira caiu, o real se desvalorizou e a curva de juros “empinou” (movimento causado pelo aumento do risco fiscal sobre a trajetória futura dos juros no país) no dia do anúncio. Por que a reação negativa?
O orçamento limitado
Como discutimos anteriormente, o grande desafio para a implementação de um novo programa social é a restrição orçamentária. Ou seja, encontrar recursos para financiar os gastos adicionais, sem que seja rompida a regra do teto de gastos – vista como principal âncora de credibilidade fiscal do país. A regra do teto é importante pois ela disciplina o crescimento da despesa pública, no momento em que o país enfrenta contas no vermelho e dívida crescente (realidade que já vinha antes da pandemia).
Conforme ilustrado abaixo, um novo programa social (ou, a que se entenda, um “Bolsa Família turbinado”) teria um custo adicional ao hoje orçado para o Bolsa Família na proposta de orçamento enviada pelo governo ao Congresso, independentemente de seu tamanho; o que exigiria, portanto, novas formas de financiamento.
Neste cenário, a justificada necessidade do aumento de gastos para conter a crise econômica aumenta o risco de deterioração das contas públicas, a menos que venha acompanhada de um corte de gastos da mesma magnitude em algum outro lugar. Se isso não ocorrer, aumentará a desconfiança sobre nossa capacidade de pagar as dívidas, levando a juros ainda mais altos à frente. Investimentos caem e o risco inflacionário ressurge, corroendo a renda dos mais pobres. Sem coordenar com a sustentabilidade das contas públicas, a tentativa de melhorar a distribuição de renda com o novo programa pode acabar gerando o efeito oposto.
A “solução” dos precatórios
A alternativa encontrada, e anunciada pelo governo e parlamentares aliados um mês após o envio da proposta de orçamento para 2021 (PLOA), que não incluiu o novo programa, foi o uso do saldo orçado para o pagamento de precatórios devidos pela União.
O precatório é um instrumento jurídico que formaliza um pagamento devido pelo governo (seja a União, estados ou municípios), em decorrência de uma condenação judicial após o trânsito em julgado – ou seja, a decisão definitiva. A origem dos precatórios são processos abertos por empresas ou indivíduos contra o Estado, que por algum motivo entendem que o governo deve ressarci-los em uma quantia. Por exemplo, um indivíduo que teve seu imóvel desapropriado para a construção de um metrô, ou uma empresa que busca ressarcimento de tributos que julga indevidos.
No orçamento da União, o pagamento dos precatórios é determinado pelo poder Judiciário, que indica o quanto das disputas judiciais envolvendo a União já foi transitado e julgado e, portanto, deve ser pago naquele ano. A título de ilustração, o total dedicado ao pagamento de precatórios cresceu de maneira substancial nos últimos dez anos, saltando de R$ 24,3 bilhões em 2010 para R$ 42,6 bilhões em 2019, e R$ 54,7 bilhões orçados no PLOA de 2021. O destino de tal montante foi, deste modo, a conta daqueles que ganharam causas judiciais contra o governo federal.
Nesse cenário, a proposta a ser apresentada como parte de uma emenda constitucional sugere que a União passe a limitar o pagamento de precatórios à 2% de sua receita corrente líquida, usando a diferença para suplementar o orçamento do Bolsa Família de modo a financiar o Renda Cidadã. A começar pelo ano de 2021, para quando a receita corrente líquida projetada é de R$804,5 bilhões, um total de R$ 38,65 bilhões em precatórios teria então seu pagamento aos credores adiado, sendo realocado para o pagamento do novo programa social.
Deste modo, o governo entende que poderia financiar o novo programa social sem descumprir a regra do teto de gastos, por não aumentar as despesas para além do montante do ano anterior corrigido pela inflação.
Finalmente, foi também anunciada a sugestão de alocar 5% do total provisionado para os próximos 6 anos da complementação da União ao Fundeb (fundo constitucional destinado ao financiamento da educação básica) – recentemente ampliada por decisão legislativa. Ainda são aguardados mais detalhes sobre como se daria tal realocação para o Renda Cidadã, especialmente diante da natureza diferente dos gastos. Porém, uma potencial “vantagem” considerada pelo governo seria o fato de as despesas com o fundo não serem contabilizadas no teto de gastos; ou seja, também não levariam a um “furo no teto” em sua concepção teórica (a princípio).
Reações e impactos
Como ficou claro ao longo do dia que seguiu o anúncio oficial da proposta, marcado pela queda no Ibovespa, alta no dólar e abertura da curva de juros, agentes de mercado não reagiram de maneira positiva à possibilidade de aprovação dessa alternativa sob a forma de precatórios. Elenco abaixo os principais motivos para tal “mau humor”.
- O adiamento do pagamento dos precatórios não exime o governo da responsabilidade de pagá-los. Por serem despesas obrigatórias oriundas de um instrumento legal previsto na constituição, mesmo diante de uma mudança constitucional sobre o momento de seu pagamento, essas dívidas precisarão ser pagas eventualmente. De acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, os precatórios não pagos serão incorporados à dívida pública. Deste modo, os R$ 38,65 bi de precatórios não pagos em 2021 serão efetivamente “empurrados para depois”, e sobre eles incidirão juros. A depender de a proposta ser temporária ou permanente, essa dinâmica se tornaria gradualmente perversa, pesando sobre a já elevada dívida pública.
- Limitar o pagamento de precatórios a 2% da receita corrente líquida elevaria a incerteza jurídica sobre tal instrumento jurídico, que hoje é base de uma relevante indústria de investimentos – os investimentos em precatórios, ou mesmo empresas cujos empréstimos ou títulos de renda fixa são atrelados à precatórios. A União estaria se igualando à situação hoje encontrada em Estados e municípios, cuja deterioração fiscal elevada e a não possibilidade de emissão de dívida levou à limitação do pagamento de maneira similar, elevando a incerteza jurídica sobre o pagamento de tais dívidas – muitas arrastadas por décadas a fio.
- Finalmente, sobre o uso de recursos dedicados ao Fundeb, a realocação de capital para despesas de naturezas distintas traz à tona o “fantasma da contabilidade criativa”. Ao criar mais uma despesa, alocada dentro de outra, fora da contabilização do teto de gastos, cresce o receio de que a regra fiscal passaria a ser apenas um regramento “para inglês ver” – e o efetivo furo na âncora fiscal se materializasse mesmo na ausência teórica da mudança.
Em suma, o anúncio da alternativa encontrada por governo e aliados deixa claro a intenção em se criar um programa social como marca da atual administração, o que é positivo. Mas para financiá-lo, não se enfrentou a necessária discussão de priorização de gastos. Optou-se por aumentar o endividamento, postergando o pagamento de precatórios ou registrando a despesa adicional fora do teto de gastos. A reação do mercado reflete deterioração do risco fiscal associada a essa escolha.
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